partilhar reflexões e mesmo emoções é uma possibilidade rara em tempos em que o individualismo grassa perigosamente, sugerindo uma paz enganosa.
Partilhar reflexões, partilhar emoções, será que ainda somos capazes dessa proeza ou a anestesia é um byproduct inevitável do individualismo epidêmico, ainda que esse individualismo refira-se a eu e a minha mulher e os meus filhos, ou eu e a minha família, ou eu e o meu time de futebol, ou eu e qualquer coisa que eu incorporo na minha visão especular que, apesar de ter outro nome, é apenas extensão do meu narcísico querer.
Disse-me o rapaz, senhor da História, que não. Ou que sim. Que é possível, que está sempre a fazer isso. Acredito em você, rapaz, tenho de me agarrar nessa sua linda e aprazível visão das relações para poder acordar de manhã e sair da cama. Anda difícil. Até mais do que quando lá fora não havia temperatura acima dos 9 Celsius.
Aqui, neste aprazível pedaço de paraíso, homens e mulheres andam de tal forma intocáveis, ou refratários, ou galvanizados, ou imunizados às emoções que eu tenho uma dificuldade imensa de olhá-los e a elas nos olhos. Até porque ninguém mais se olha nos olhos, ou então tem sempre algo que não é oferecível pois é consequência do tal individualismo e exige troco, estabelece, de antemão, moeda de troca e avaliação, quase sempre determinada por quem a exige e não negociada por ambas as partes interessadas na troca.
E a outra parte da tua frase, sugerindo uma paz enganosa. Acho que querias dizer uma apatia, pois a paz é bem vinda e viceja idéias e reflexão. O problema é que, para não nos chatearmos, preferimos chamar paz à apatia. Sim, porque no fim das contas, ser apático é o não-ser, no não-lugar e todos têm o seu lugar no mundo de hoje arrumadinho, divididinho, categorizadinho. Ninguém vai admitir que não sabe bem o seu lugar, que está perdido. Pois eu prefiro estar perdido. Faço uma plataforma pelos déroutés de todas as nações e tendências. Tenho a intuição de que não sobra quase ninguém se a maioria for sincera. Mas quem é que falou que ser sincero está na moda.
Voltemos ao nosso mundo individualzinho, arrumadinho, delimitadinho e cheiinho dessa paz enganosinha. Fica tão bonitinho na fotinha.
7 comentários:
é cada vez mais assim, Lóri...
mas olha que o tal mundo arrumadinho e com cartazes coloridos de paz e amor, deixa as fotografias demasiado amareladas...
bjs
Lori:
na mitologia guarani, antigos habitantes destas paragens, existia o mítico "caminho do Peabirú", rotas secretas que não deixavam o caminhante se perder nas matas... Na selva de concreto, onde encontrar os "caminhos do peabirú"? Talvez no olhar das pessoas, esse mesmo olhar que as pessoas fogem... Porém, o brilho do olhar lá continua, latente, pois é imanente ao "estar vivo", por mais que se oculte e mesmo se perca para sempre na apatia ou nos compartimentos "arrumadinhos", que também se chama sucesso (eu! eu! eu!)
Partilhar experiencias, mesmo na frieza dos sinais holográficos, retoma uma possibilidade que em tempos remotos nos era indiscutível: quem sabe um lampejo, um brilho de luz resulte de um "dedo de prosa"? Ou de um gole de café, do teu preferido Asas do Desejo, de Wenders???
Hummm.. ser anjo ou senhor da história é muito chato. Perde-se o detalhe do olhar...
Que lindo isso, Joca! Adorei a comparação, vou procurar o caminho de Peabirú, se v diz q está lá, no olhar, não vou desistir, nem resistir. Ao ler-te veio-me, instantaneamente, o olhar inesquecível da tua musa, a Binoche, que vi recente e reconfirmei o poder daquele olhar que é a própria essência da sua presença nas histórias, foi em "O Cavaleiro no telhado e a dama das sombras" (Le hussard sur le toit, no original). Se ainda não viste, corre pra locadora. Se já, diz-me o que achas, pois só consigo lembrar dos olhares sempre trocados dentro do filme. Como podes ser tão sábio, querido caminhador?
Qto à troca e ao "dedo de prosa", quem sabe não coseguimos um café de verdade, em technicolor (sempre o Wenders, lembra qd o filme passa de P&B para colorido?), na costa ou no planalto?
Beijos
Luís, querido,
Quem sabe haja esperança, no olhar? Lembro tão bem do teu, com o sorriso à mistura.
AInda há quem vá muito além da foto e alcance o olhar, não achas?
Beijos, que hj estou mais inteira, dormi com um anjo, como há dias não fazia.
Obrigado pela visita e comentário... à terceira vez costumo linkar...
Jnh
Lóri:
Já tive esse filme nas mãos (O cavaleiro das sombras...) e não levei. A musa Binoche tem realmente A Força no olhar: trágico, apaixonado, o que mais? Como esquecer o desespero daquele olhar, quase ao fim de Perdas e Danos, quando o jovem despenca escada abaixo?? O olhar blasè (apatia?) ao saber do fatal acidente da familia em A Liberdade é Azul (também quando encontra o amigo no apartamento)? O deseperado olhar, mas algo ali vibra, não se perde...
Wenders trabalha e capta muito do olhar - Natasscha Kimsky, ao se voltar na cabine, olhar intenso de menina; o olhar decidido e ao mesmo tempo vazio de Dean Stanton no início, ambos de de Paris, Texas.
O terrível olhar de John Wayne em rastros de Ódio...
Perfeitamente, lembro-me sim, da passagem P&B para cores, quando o Anjo se "humaniza", não é??? Ah, o cinema, o cinema! A vida secreta das palavras, esse também quero ver.
o dedo de prosa? Claro, em technicolor. O planalto é - ou foi - a terra do café; a Costa sempre será a Corte.
Bjs
Vamos lá senhora Lóri, que é agosto e é Verão. Pensa que em algum lugar do mundo alguém deve ter encontrado a paz, que não sendo enganosa, é mais duradoura...até acabar outra vez.
beijos, querida menina, que não se galvanizou.
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