domingo, 6 de julho de 2008

Appellation d'Origine Contrôlée

Joca,

respondo à tua pergunta, sem saber direito se será uma resposta. O título do post inspira-se justamente nessa tua frase que pincei e colei abaixo:

além do mais, para mim, "fato" e "facto" dá no mesmo... e acho delicioso pegar um livro de lingua portuguesa e poder identificar a origem de quem fala/escreve...

Na verdade, tenho que agradecer a alguns amigos e conhecidos que, como tu, têm me remetido com maior ou menor freqüência à questão da reforma e me fazem sair do conforto da academia e de não estar no campo da língua materna, o que me permite - ou permitiu, até aqui - manter-me à margem, sem assumir uma posição. Um dia, enfim, temos que deixar o conforto e cair na água gelada, ou sujar as mãozinhas, ou pô-las na massa, ou carregar pedra. Vamos a isso, sem muita resistência.

Colocas-me a questão fundamental, a da identidade de um grupo de falantes de uma variedade de uma qualquer língua. Por esse lado, eu concordo contigo, as marcas identitárias que fazem a distinção entre o Português da Península Ibérica e este outro - o mesmo, mas diferente - deste enorme trecho da América do Sul, devem ser preservadas e iluminadas, de forma a proporcionar às gerações mais jovens e às que ainda nos lerão a possibilidade de fazer descobertas sobre si mesmas e sobre os outros.

Descobertas que começam na língua e se estendem para além das folhas de papel e das páginas virtuais da rede e vão dar lá bem longe, nas serras do Torga, nos sertões do Guimarães e nas praias do Jorge. A descoberta de um povo e de muitos povos que se expressam no mesmo código, mas que trançam a palha de forma diferente, temperam peixe e feijão com outros segredos, ainda que, no momento do amor, usem as mesmas palavrinhas, mas em ordem diferente - te amo / amo-te. Tenho esse mesmo sentimento que descreves, como quando se bebe o vinho e busca-se, na garrafa, a região de origem e as fantasias pululam na mente até repercutirem no sabor do líquido que se espalha pela língua e escorre pela garganta.

Por outro lado, como técnica que sou, tenho que mencionar que a língua tem múltiplas funções e algumas delas ligam-se a necessidades muito básicas que vão todas dar ao sempre e já descrito vil metal. As necessidade de que falo ligam-se a questões políticas de urgência, não fossem todas as questões sempre políticas.

A língua portuguesa é falada em um sem-número de lugares pelo mundo afora, em todos os continentes, por escolha ou imposição. Ocorre que, em muitos desses locais, essa língua expressa anseios e aflições de povos bastante desprovidos economicamente. Como conseqüência disso é preciso encontrar saídas, ou aberturas maiores, sem dar munição às máfias editoriais que são, em última instância, responsáveis pelo controle do acesso à educação. Sim, trata-se de povos falantes de uma língua que tem, desde o século XII, suporte escrito, oferecendo, portanto, aos seus falantes a possibilidade de registro permanente e escolaridade eventual - quando a economia permite.

Isso tudo para dizer que fico a favor do acordo, por duas razões: uma é a possibilidade de distribuição de publicações de todo tipo - dos jornais aos livros escolares - feita pelos dois grandes pólos de publicação em português, Portugal e Brasil. Essa possibilidade promove concorrência e não só leva a uma baixa dos preços, mas também faz com que se possa usar indiscriminadamente livros de qualquer uma das origens, sem o impasse visto até aqui com relação aos livros publicados em cada lado do Atlântico, sobre os direitos de edição da obra em cada país e sobre a impossibilidade de se comercializarem edições feitas no outro país. Suponho eu, ao menos, que assim seja, pelo que li das implicações legais do acordo e, também, pela querela entre o Agualusa e o Graça Moura... mas isto já são outros quinhentos... anos.

A outra razão, para mim mais tranquilizadora, é, como técnica, saber que a ortografia não altera em nada a expressão identitária de um povo. Diminui a margem de reconhecimento imediato ou para os menos informados, por não trazer em suas linhas o equivalente lingüístico às letrinhas AOC, mas todos continuarão a falar do mesmo jeitinho. Uns, como nós, caiçaras aqui do Rio, continuarão a eliminar o "R" final depois de "a" e "e", e vamos todos
falá e comê no calçadão em diaj de sów. Outros, vão vere o fqp a jogare pelo Puorto no estádio do Dragão. Os alfacinhas vão para a pischina falar mal dos faschistas e aí em Sampa, vocês vão continuar cOmendo dois pastew e um chopis...

PS: Para outras discussões vejam aqui textos de muita gente, inclusive meus, sobre esses arquiusados argumentos para validar uma ou outra variedade como a melhor. Continuo achando que o que interessa não é ter razão, é ser feliz e construir um mundo possível em qualquer das variedades. E, sobretudo, usar a língua como ponte e não como barreira ou posto de controle fornteiriço. Considero que faço isso e fazem também os autores dos blogs que freqüento.


4 comentários:

Luis Eme disse...

é por muitas das razões que invocas, que também não me assusta nada o acordo, Lóri.

olhando em volta do mundo português, encontro mais aspectos positivos que negativos, no acordo.

beijinhos

Joca disse...

Lóri:
Compreendo perfeitamente tua posição, como técnica - grato pela referência á minha imerecida pessoa.
Minha formação conduz-me, entretanto, a desconfiar sempre dos aspectos politicos e/ou econômicos em jogo, que podem estar sendo conduzidos em moldes interesseiros - leia-se editoriais.
A cada vez que ouço falar na grande reforma ortográfica, penso porque os países de lingua inglesa nunca falam nisso, e olha que eles possuem um montante razoável de vogais há muito superfluas?... Assim, temo que prevaleça as questões menos "nobres" de tudo o que os técnicos correta e honestamente empenhados, discorrem. Só quero dizer que talvez se faça muito barulho por algo que talvez não tenha a importancia alegada...
Contudo, nessa questão não há vencedores ou vencidos. Creio sinceramente ser salutar a discussão. Além do mais, como bem disseste, isso nao alterará negativamente a expressão cultural dos povos em questão, que, no fundo, é o que interessa aos usuários da lingua.
Devo também dizer que lançaste luz a muitas coisas, que devo absorver e degustar com mais vagar....
beijos!

Pitanga Doce disse...

Lóri, sabes bem que das letras só sei senti-las e colocá-las no papel. Não sou técnica como tu, minha "escrivinhadeira" querida, mas este acordo, não me diz lá muito a não ser que tudo pende sempre para o exagero.
Tenho lido em alguns blogs de amigos portugueses que se levantam em defesa da língua mãe e que juram de pé juntos que isso foi idéia de algum brasileiro.
Confundem o escrever com o falar e e se atêm no que ouvem nas malditas telenovelas.
Já li algumas pérolas de que "agora teremos (eles) que escrever "robô" e "paxão".
Sabemos que em todos os lados há quem fale corretamente ou não. Assim como entro em blogs do lado de lá e vejo constantemente Ç antes de E e I, e fico quieta. Ou quando os apresentadores do telejornal da SIC castigam um "o que nos fizeram a nós". Ou na telenovela portuguesa um "tu disseste-me a mim".

E agora? Vamos brigar? A língua é deles, a língua é nossa. O que é preciso é escrevê-la e dizê-la bem, sem exageros de policiamento e com o sentimento de quem tem a única e verdadeira SAUDADE, que é só nossa!

beijos, Lóri e vai seguir mail

Joca disse...

Alguns amigos com quem tenho falado e que têm tomado contato com essa discussão, grosso modo, colocam-se mais ou menos do seguinte modo: técnicos e educadores são a favor; ficcionistas geralmente são contra ou indiferentes. Minha amiga Iara, escritora e professora lá de Uberaba, colocou-me uma questão curiosa: muitas editoras estão lançando material didático antigo como se fosse novo, com o rótulo "de acordo com a nova ortografia..." ou coisa parecida.

Bem, segue abaixo uma citação, enviada a mim pela própria Iara Fernandes, atribuída a Oswald de Andrade:

"...Contra o gabinetismo, a prática culta da vida (...)
A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos (...)..."