"Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos."Churchill (1874-1965)Há, realmente, coisas que só devem acontecer por aqui, nestes trópicos que o Strauss chamou de tristes, mas que, ao contrário, me fazem rir satisfeita e acreditar que, como o Churchil comentou sobre a democracia, este lugar também deve ser, entre todos os do planeta que não se parecem (ou, sim, parecem) com o paraíso, o pior lugar, salvo todos os outros.
Estava eu no já esperado, terrível e temível engarrafamento de sexta em fim de tarde na Lagoa. Tinha até me preparado para a prolongada espera dentro do bólido vermelho, comprei Prestígio e Suco de uva diet. Quando, a vida ou a cidade (pois eu sei que isso só é possível em poucos lugares e, de preferência, abaixo do Equador) me oferece um espetáculo digno de nota.
Eu, na pista da esquerda, observava o movimento dos ambulantes que oferecem, aos motoristas, pipoca pronta, biscoito Globo e refri ou água daquelas caixinhas de isopor. De repente, um deles, homem de uns trinta e poucos, com sacos de biscoito nos dois ombros, começa a gesticular enfaticamente na minha direção, chamando e indicando - de-ses-pe-ra-da-men-te - um outro ponto, à sua esquerda, e à minha direita, já que ele estava de frente para mim.
Eu olho e só vejo um ônibus parado na pista da direita. Logo a seguir, percebo, correndo pela calçada da esquerda, uma mulher bem jovem, com a caixinha de isopor sacolejando no quadril direito. Ela passa pelo meu carro, atravessa a rua e ultrapassa o ônibus. O motorista do dito, aflito, põe o braço pra fora (além do bigode que se vê claramente no seu perfil) e aponta para trás, a moça, um pouco confusa, tenta seguir-lhe o movimento. Finalmente, há mais alguém com a mão de fora da janela, bem no meio do ônibus, apontando para dentro do veículo. Lá dentro, em pé, uma jovem de cachos louros estica-se, com uma nota de dois reais na mão, em direção à janela de onde saía a tal mão que apontava para dentro.
A ambulante olha para trás a ver se não corre o risco de ser atropelada pelos apressados moto-boys com suas irritantes buzininhas ansiosas, aproxima-se da janela e, moto-contínuo, tira do isopor uma garrafinha de água mineral, segura a tampa da caixa, estica a garrafa e, ainda segurando-a, pega a nota da mão da menina que continuava esticada dentro do ônibus, por cima das orelhas dos dois passageiros sentados na sua direção.
Aqui, vem o melhor. Eu observava tudo e pensava: "é, aumentaram os refris dos ambulantes, antes era tudo um real". Nesse momento, a vendedora não se move do meio da rua, apenas dá uma espiada na direção de onde vêm as afamadas motos pelo meio das duas filas de veículos, e enfia a mão no bolso.
Tudo se esclareceu e a minha mente de analista sociológica de meia-tijela quase vai ao delírio quando eu compreendo que, não apenas o ônibus continuava parado, apesar de não haver mais nenhum carro à sua frente, parado que tinha ficado, aguardando a chegada da ambulante da caixinha de isopor, como ele continuava exatamente no mesmo ponto da rua, esperando que ela procurasse a moeda para dar troco a sua feliz e loira compradora.
Enquanto isso, nenhum movimento estranho dentro do ônibus, nenhum sinal visível de impaciência, seja da parte do motorista (ele próprio tinha sido a prestável criatura que indicara quem afinal queria comprar o precioso líquido), seja da parte dos outros passageiros, nem mesmo aqueles, por cima dos quais, a passageira tinha se esgueirado para entregar o dinheiro e recolher a garrafa.
Afinal, a vendedora conseguiu encontrar a moeda, fez sinal ao motorista, que a observava pelo espelho lateral externo, de "só mais um instantinho" e pediu ao passageiro da janela que fizesse a gentileza de entregar o troco à sua freguesa. Claro, esta última e polida conversa eu não posso assegurar que se tenha passado, mas que eu fiquei encantada com toda a situação, lá isso fiquei. E a ela assisti de camarote, já que a minha fila, ao contrário da fila onde se encontrava o ônibus, continuava totalmente congestionada e com os carros parados nos mesmos lugares há pelo menos uns 10 minutos. Isso me lembra uma outra história, verídica, vivenciada pela Menina sem nome, mas fica pra outra hora, ou ela mesma se encarrega de contar.