sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Tristes trópicos... tristes???


"Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos."Churchill (1874-1965)



Há, realmente, coisas que só devem acontecer por aqui, nestes trópicos que o Strauss chamou de tristes, mas que, ao contrário, me fazem rir satisfeita e acreditar que, como o Churchil comentou sobre a democracia, este lugar também deve ser, entre todos os do planeta que não se parecem (ou, sim, parecem) com o paraíso, o pior lugar, salvo todos os outros.

Estava eu no já esperado, terrível e temível engarrafamento de sexta em fim de tarde na Lagoa. Tinha até me preparado para a prolongada espera dentro do bólido vermelho, comprei Prestígio e Suco de uva diet. Quando, a vida ou a cidade (pois eu sei que isso só é possível em poucos lugares e, de preferência, abaixo do Equador) me oferece um espetáculo digno de nota.

Eu, na pista da esquerda, observava o movimento dos ambulantes que oferecem, aos motoristas, pipoca pronta, biscoito Globo e refri ou água daquelas caixinhas de isopor. De repente, um deles, homem de uns trinta e poucos, com sacos de biscoito nos dois ombros, começa a gesticular enfaticamente na minha direção, chamando e indicando - de-ses-pe-ra-da-men-te - um outro ponto, à sua esquerda, e à minha direita, já que ele estava de frente para mim.

Eu olho e só vejo um ônibus parado na pista da direita. Logo a seguir, percebo, correndo pela calçada da esquerda, uma mulher bem jovem, com a caixinha de isopor sacolejando no quadril direito. Ela passa pelo meu carro, atravessa a rua e ultrapassa o ônibus. O motorista do dito, aflito, põe o braço pra fora (além do bigode que se vê claramente no seu perfil) e aponta para trás, a moça, um pouco confusa, tenta seguir-lhe o movimento. Finalmente, há mais alguém com a mão de fora da janela, bem no meio do ônibus, apontando para dentro do veículo. Lá dentro, em pé, uma jovem de cachos louros estica-se, com uma nota de dois reais na mão, em direção à janela de onde saía a tal mão que apontava para dentro.

A ambulante olha para trás a ver se não corre o risco de ser atropelada pelos apressados moto-boys com suas irritantes buzininhas ansiosas, aproxima-se da janela e, moto-contínuo, tira do isopor uma garrafinha de água mineral, segura a tampa da caixa, estica a garrafa e, ainda segurando-a, pega a nota da mão da menina que continuava esticada dentro do ônibus, por cima das orelhas dos dois passageiros sentados na sua direção.

Aqui, vem o melhor. Eu observava tudo e pensava: "é, aumentaram os refris dos ambulantes, antes era tudo um real". Nesse momento, a vendedora não se move do meio da rua, apenas dá uma espiada na direção de onde vêm as afamadas motos pelo meio das duas filas de veículos, e enfia a mão no bolso.

Tudo se esclareceu e a minha mente de analista sociológica de meia-tijela quase vai ao delírio quando eu compreendo que, não apenas o ônibus continuava parado, apesar de não haver mais nenhum carro à sua frente, parado que tinha ficado, aguardando a chegada da ambulante da caixinha de isopor, como ele continuava exatamente no mesmo ponto da rua, esperando que ela procurasse a moeda para dar troco a sua feliz e loira compradora.

Enquanto isso, nenhum movimento estranho dentro do ônibus, nenhum sinal visível de impaciência, seja da parte do motorista (ele próprio tinha sido a prestável criatura que indicara quem afinal queria comprar o precioso líquido), seja da parte dos outros passageiros, nem mesmo aqueles, por cima dos quais, a passageira tinha se esgueirado para entregar o dinheiro e recolher a garrafa.

Afinal, a vendedora conseguiu encontrar a moeda, fez sinal ao motorista, que a observava pelo espelho lateral externo, de "só mais um instantinho" e pediu ao passageiro da janela que fizesse a gentileza de entregar o troco à sua freguesa. Claro, esta última e polida conversa eu não posso assegurar que se tenha passado, mas que eu fiquei encantada com toda a situação, lá isso fiquei. E a ela assisti de camarote, já que a minha fila, ao contrário da fila onde se encontrava o ônibus, continuava totalmente congestionada e com os carros parados nos mesmos lugares há pelo menos uns 10 minutos. Isso me lembra uma outra história, verídica, vivenciada pela Menina sem nome, mas fica pra outra hora, ou ela mesma se encarrega de contar.

13 comentários:

Luis Eme disse...

há espectáculos que só são possíveis em lugares especiais, sem qualquer dúvida...

bjs Lóri

Francisca disse...

A essa altura do campeonato já esperávamos o pior...Aliviamos quando vimos que era só falta de troco. E viva a relatividade da realidade!

bjs,
Francisca e Telma

Joca disse...

... salvo engano, acredito ser uma cena bem carioca - ou talvez a lembrança de um Rio de épocas remotas, pois, sem dúvida há cordialidade - cordialidade no caos! Também é possível em certos sítios do nordeste, acho. Tal cena seria muito improvável em Sampa, exceto em determinados lugares da periferia.
A observação, muito pertinente, cena de filme ou de deliciosa cronica - que foi feita, diga-se, mesmo à pressa!

bjs

Rosa dos Ventos disse...

Adorei a tua deliciosa e fresca estória!
Só mesmo "abaixo do equador"!
Por aqui seria inimaginável uma cena destas...

Abraço

Titá disse...

Deliciosa a sua crônica sobre o carioca: um povo que sabe deixar a gente de cabelo em pé, mas que também nos oferece cenas tão docemente irreais que chegam a ser desiguais... E viva o povo brasileiro!
Bj

Lóri disse...

Sonia, minha querida oriunda do Centríssimo deste Brasilzão,

adorei os seus termos "docemente irreais". Pois é, somos assim, tão diferentes e tão atraentes.

Beijos!

PS: Arranjei um celular que conta passos, já imaginou? Agora só falta tempo p voltar a andar!

Lóri disse...

Joca, pois é, Sampa quae que não faz parte do Brasil, embora seja lotada de brasileiros de todas as latitudes. E o Nordeste se parece com o Rio, pois tem mar, pra matar mais de inveja esse povo do planalto poluído! OK, caos, mas bem humorado.

Beijos,

Lóri disse...

Fran, querida,

que bom vê-la por aqui. Saudade do seu olhar despoluído. E é assim, nem tudo é o que parece ou o que nos faz crer nosso pessimismo.

Bjs,

Lóri disse...

Luís,
todos os lugares são especiais, pois especiais são as pessoas que os habitam. Mas é verdade que alguns ambientes são mais favoráveis para umas coisas do que para outras.

Bjs,

Lóri disse...

Senhora dos ventos,

acho que ias gostar de andar por aqui. Pelo menos, aqui, ninguém estranha quando falamos com desconhecidos. :)

Bjs,

Joca disse...

Lòri:

O "impensável" referido seria nos chamados "points", nos Jardins, nas avenidas centrais, etc. Deve ser mesmo por conta da origem provinciana, o açodamento das relações.
Contudo, mesmo sem praia, consegue-se, alhures, uma pausa no caos para "um dedo de prosa" e assim, descobrir Sampa como o lugar ideal para uma Reunião de Todas as Tribos e cenas "improváveis", tais como a carroça comportabilissima em meio aos carros... São as muitas Cidades Invisíveis, sobrepostas, como diz o Calvino..bjs

Lóri disse...

Tens toda razão e muito bem o dizes, meu querido Joca. O problema é que eu tenho uma tristeza danada dos meus (outros) amigos paulistanos que nunca, mas nunca mesmo, reconhecem alguma qualidade ao Rio (e q tem muitas, eu sei) e sem a menor cerimônia, nem mesmo em consideração à amizade, passam a vida a criticar, quando cá estão, nem têm a delicadeza de me poupar. Assim, eu pego qualquer pontinha para rpovocar. Mas eu bem sei que há esses lugares, e nem é preciso ir longe. Eu tenho recordações deliciosas do Parque do Ibirapuera e de suas redondezas.

Bjs insones

Joca disse...

Lóri:

bem se vê que esses "críticos" certamente são os "herdeiros" da pior parte do provincianismo: a arrogãncia, a eleição do umbigo como centro do mundo. Bem, deves já saber que sou um "paulistano do interior" e deploro todo tipo de pedantismo...
Estive poucas vezes no Rio, a última faz algum tempo.... Mas guardo recordações deliciosas da cordialidade, da gentileza de todos... Isso foi há muito tempo, mas creio que essa característica deve estar no cerne. Sem falsos confetes, digo que consideramos sempre o Rio como a Corte, lugar de concentração da elite pensante, cultural, sem falar da beleza inerente...
Ah, o Ibirapuera! Nossa praia!

beijos!