Eu devia ter uns 12 anos, não mais. Era a primeira vez que ia ao cinema sozinha. Pelo menos foi isso que acabou acontecendo. Eu marquei com uma colega de escola que não apareceu, era um cinema de bairro, pertinho da escola, que hoje não existe mais. Eu tinha comprado a entrada e, quando deu a hora, entrei e fui sozinha, orgulhosa da minha coragem, assitir ao meu primeiro Zefirelli:
Fratello sole, sorella luna. Na época eu nem sabia bem o que era cinema, ou melhor, Cinema, com
capital letters, mas eu sabia que a sensação da telona e tudo que vinha a seguir ao apagar das luzes era uma das melhores sensações que já tinha experimentado.
O filme deixou marca indelével. Hoje, mais de 30 anos depois, eu consigo lembrar da impressão que me causou. Lembro, sobetudo, da impressão que aquela figura masculina e frágil me causou. Nunca mais eu me livrei da sensação. Virou um ícone. Na época eu começava a frequentar a igreja católica por minha livre vontade, freis agostinianos e comunidades de base onde viria a surgir o primeiro partido de esquerda, quando a ditadura finalmente fosse dada por encerrada, 10 anos depois. Alguns anos mais, veio a decepção com a instituição. Vieram outras leituras, vieram outras experiências, individuais ou em grupo, e eu me afastei daquela igreja, embora me diga sempre católica, sei que sou isso mesmo, ainda que tenha concepções que se afastam muito das regras em vigor e cada vez mais, a julgar pelos dois últimos pontífices.
Uma coisa, porém, permanece daquela experiência "cinematográfica" em mim: Francesco. O de Assisi. Nunca mais na vida livrei-me da admiração e de uma ternura solidária por aquela figura de homem que, intimamente, eu sei, ninguém jamais vai descrever com fidelidade, dada a distância temporal, o desgaste histórico, o sobrepor, incessante e desmesurado, de imagens e interesses sobre a figura original. Como se fosse um afresco antigo que desaparece sob a cal, reaparece com novas cores, com dourados improváveis, com descalabros. Seja como for, eu sou absolutamente hipnotizada pelo Francesco d'Assisi. E as coincidências andam sempre rondando.
Há anos, em Florença, no mercado ao lado da entrada da Ponte Vecchia (a que incendiou, mais tarde), todos compravam um sem número de coisas, grandes e pequenas, eu, a única coisa que comprei, pois achei aboslutamente extraordinária, foi um crucifixo em madeira, daquelas imagens típicas da iconografia bizantina, com dourados e sem perspectiva. Era a imagem mais bonita que eu já tinha visto de crucifixo, a mais singela também. Ainda me encanta aquele estilo, há uns anos em Antuérpia, fui parar dentro de uma igreja ortodoxa, com aquela conhecidíssima imagem da N.Sa. do Perpétuo Socorro, bem bizantina, chapada em uma parede de uns 5 metros de altura. Linda.
Pois bem, o crucifixo florentino eu guardei e ainda está em uma parede de corredor da minha casa, acompanhou-me em muitas andanças e
démenagements. Este ano, pela Páscoa, fui a uma exposição de crucifixos organizada no centro cultural do católico lugar onde trabalho, vejo o "meu" crucifixo entre os trezentos e tantos exemplares, pergunto ao padre que organiza a exposição alguma informação sobre o dito e ele, muito naturalmente, responde: esse é o Cristo de Assis. Eu quase caio dura, pois aquela compra, treze anos atrás, tinha sido absolutamente intuitva, a minha (se é que se pode chamar assim) devoção começou a se concretizar bem mais tarde. Descobri, hoje, que, de fato, aquele crucifixo é o que estava na igreja de San Damiano, construída por Francisco e seus amigos, reconstruída de uma capela em ruínas. Aquela, não a outra, basílica rica e pomposa, que nada tem a ver com a simplicidade e o que devia ser o coração daquele homem.
Desde então, ganhei umas quantas imagens, comprei outras, aprendi pequenos detalhes, descobri o Tau, encontrei um editor paulista que é tão devoto que tem imagens de Francesco de todos os lugares por onde já passou. Descobri que no Nordeste do Brasil, é o Francisco das Chagas, destino de peregrinação em época de seca ou de qualquer outra aflição. Ganhei de uma pessoa especial um exemplar de lá, feito em madeira, por um mestre-santeiro conhecido. Também comprei algumas, muito menos do que as que me foram oferecidas.
Ontem foi dia dele. Da morte dele. E eu tinha que falar sobre isso hoje. Agrada-me mais do que mencionar a República Portuguesa, ou as nossas eleições, embora, eu tenha feito uma prece silenciosa, com todo o meu coração, antes de apertar o botão da minha eletrônica urna, para que um pouco da energia e do espírito do Francesco escorram lá da velha Assisi até nós.
