quarta-feira, 2 de julho de 2008

A palavra amealhada

Há exatos dois anos, comprei este livro ao acaso, porque o título me apetecia. Li duas ou três flhas e deixei-me levar pela imposição desenfreada do imediato e poderoso Chronos, esse deus que a maioria adora e incensa. Eu também, andei incensando-o em demasia e o acaso, novamente, a força intrínseca da linguagem que mora em mim, jogaram-me novamente na corrente desta leitura, de onde saí lavada e salva, ao menos por enquanto. O livro chama-se A palavra ameaçada, escrito por uma lingüista e poetisa argentina de nome Ivonne Bordelois. Eis o meu meio de expressar a bronca recorrente.


O espaço oficial da palavra está hoje confinado aos "meios", termo cuja metáfora convém questionar. São realmente meios de informação, comunicação ou entretenimento, como se pretendia nas épocas inaugurais? Não está suficientemente claro, dadas as corridas desenfreadas pelo maior Ibope, dada a substituição do âmbito legal e judicial, dado o caráter extorsivo com relação às figuras públicas, que os chamados meios são antes de tudo meios de poder? (...) Mas a palavra entregue ao poder não é linguagem mas pura consignação, mandato, exploração, alheia à preciosa liberdade, que é o destino profundo da verdadeira palavra humana. E nunca como agora cabe dizer que os fins não justificam os meios.

Existe então uma tensão nas relações entre cultura e linguagem. De certo modo, podemos dizer que a cultura inveja da linguagem o seu desenfreado poder de regeneração. A violência sobre a linguagem, sobre o Eros que manifesta a linguagem, só pode vir de uma poderosa pulsão de morte ambiental que tende a manipular, deteriorar e deturpar o sentido primeiro e original dessa comunicação única, celebrante e prazerosa que é a linguagem no mundo do Eros. A linguagem congrega e comunica, a violência obtura e destrói. Quando a violência se apropria da linguagem, temos a repetição compulsiva do insulto - nosso eterno babaca -, a blasfêmia da agressão sexual - filho da puta -, o incesto verbal - go fuck your mother (vá foder a sua mãe). Quando é a linguagem que se apropria da violência temos Ésquilo, Shakespeare, Quevedo, Isaías, Cristo: a maldição sacra, o exorcismo necessário, a expulsão dos demônios íntimos e sociais.

A palavra poética é violência contra a palavra estabelecida. (...) E a palavra ressuscita chamando e chamejando novamente, recordando a sua e a nossa origem.

Mas é necessário advertir também que a cultura massificante desconfia da linguagem porque, como já dissemos, a consciência crítica da língua é o começo de toda crítica. Segundo Saussure, o modesto e misterioso suíço que funda a lingüística contemporânea, a língua é o sistema social mais poderoso porque está gravado fundamentalmente no inconsciente. Por isso, para aparecer diante de nós mesmos, a primeira recuperação que se faz obrigatória é o reconhecimento de nossa linguagem. Esta é justamente uma das mais poderosas razões pelas quais as grandes culturas contemporâneas não favorecem o desenvolvimento da consciência lingüística ou a restringem somente ao malabarismo da propaganda comercial. Uma cultura massificante entorpece o acesso aos estratos mais profundos da linguagem e de sua consciência, transmite preconceitos sem denunciá-los, empobrece o vocabulário ou esquece suas refrescantes origens.

E justamente porque se opõe à linguagem, a cultura contemporânea destrói o silêncio, que é a condição primeira e fundamental da palavra genuína, a que vem do necessário e do íntimo e que não é simples mola de resposta mecânica. (...) A balbúrdia de nossas cidades, os decibéis de uma música descartável que continuamente atordôa e ensurdece, desafiando e impedindo toda forma de comunicação, são modos patentes de uma violência cada vez mais invasiva que só se sacia com a obstrução da consciência, em particular da consciência que se alimenta dos poderes do diálogo sossegadamente nascido do silêncio.

11 comentários:

Luis Eme disse...

que turbilhão de palavras e de ideias...

concordo contigo... e não é por sermos "velhos".

esta gente das grandes urbes está mais doente, mais pobre, mais ignorante e mais violenta... e pior, não sabe parar para pensar ou para ouvir...

a cultura de hoje que falas, destroi o SILÊNCIO, tão necessário para saborearmos a vida...

beijinho Lóri

Lóri disse...

É Luís, por isso eu quis esse título. Pq tb se pode e se deve amealhar palavras, para usar quando convier, sem desperdício, mas sem usura, mas para ressuscitar, recuperar, reconhecer o outro e a nós mesmos. Beijos

Joca disse...

Lóri:
O que voce acha da chamada reforma ortográfica?

Quanto ao seu texto, como leitor, acho que a violência presente na linguagem reflete a violência e ausência de capacidade de reflexão. Acho isso perigoso, pois a linguagem é coisa viva e merece ser cuidada, bem tratada e, creio, deve seguir as sinuosidades da alma humana, dela ser reflexo, mesmo pálido e impreciso.
Assim, é imperativo que se renove - daí meu apreço por Guimarães, que considero dos melhores do mundo! - pois a linguagem paralisada se "desgasta e banaliza", na opinião de Valnice Nogueira. Porém, a renovação deve ser uma construção e não a barbaridade destrutiva que se vê por aí, quase uma volta aos grunhidos primais de nossa espécie...

Professor Texto disse...

Maestra: lindo tecido, agulha e linha de primeira qualidade. Lembrei de Cecília, de Pessoas, de Vinicios e outros tantos quilates. E fiquei, não sei pq, com a Lya Luft. Pensar é transgredir.
"(...)Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar. Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo. Se nos escondemos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos possíveis ganhos. Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem".
=)

Lauro António disse...

Diz-me Lori: que pensas tu da Lya Luft? Trouxe do Rio um livro dela, que já li, e fiquei meio sem saber o que pensar. Aproxima-se perigosamente dos blogues brasileiros com anjinhos e outros milagres ou coisas fantásticas (sabes ao que me refiro: ingenuidade "fantástica"), mas por outro lado é bem escrito, tem uma leveza de escrita interessante. Ela é Light por aí? Ou é mesmo muito considerada?
Enquanto pensas, vai daqui um beijo lisboeta.

Lauro António disse...

Esqueci-me de dizer o livro: "O Silêncio dos Amantes". Contos. Alguns gostei muito. Outros... não sei. Eu que costumo ser tão "gosto - não gosto".

Joca disse...

...como o assunto é "palavra" tenho de registrar aqui um dos mestres da palavra, surpreendentemente esquecido nos grandes centros: Ricardo Guilherme Dicke. também pudera: se "exilou" voluntariamente em Cuiabá e nesse país que dá as costas a seu interior, curiosamente parece estar num excelente posto de observação: sua linguagem elegante, porém cortante como lâmina disseca esse país peseudo-moderno, pois a todo momento - no interior ou no litoral - são os modelos arcaicos que prevalecem nas relações - que sejam sociais ou mesmo pessoais.
Assim, aqui vai a dica: Dicke, Ricardo Guilherme (perdoe o trocadilho) e Toada do Esquecido e Sinfonia Equestre!

Lóri disse...

QUerido Lauro,

A Lia Luft é uma incógnita para mim e, sinceramente, não é leitura que me seduza. A minha irmã deu-me, em tempos, "Perdas e ganhos", livro que muitos acusaram de auto-ajuda. Eu não consegui passar das primeiras 15 páginas, ou por aí. Depois ficou rolando dentro do meu carro e nem sei que é feito dele agora. Esse de que falas não conheço.

Ela foi casada com não sei quem famoso. Francamente, acho que pensaria o mesmo que tu se a lesse. Parece ser desses autores que conseguem fazer boas combinações de palavras, somado ao fato de que vem de um estado rico no Brasil, não precisa ser boa demais, basta ter um editor com grana para publicar.

Por outro lado, eu gostei muito do conto e dos dois livros que li da Inês Pedrosa e um português, excelente leitor, que conheço, acusou-a de má literatura. Vá lá entender o público de livros.

Mas, respondendo à tua pergunta, acho que ficaria na categoria "light", sobretudo está na Academia e os mais valorosos se recusaram a tomar chá com gente do quilate do Sarney, outro acadêmico. Talvez eu seja má, há que levar tudo em conta...

Beijos do inverno no Rio.

PS: Ando em falta com toda a gente: lesionei o tornozelo esquerdo e distendi o dedão direito, além de fazer uma contusão no joelho direito, tudo de uma vez, mas hj já conduzi, apesar da dor.

Lauro António disse...

Muito obrigado pela dika. Já tinha lido, mas não tinha deixado o agradecimento.

Joca disse...

...mais uma dika: uma obra de Guilher Dicke foi transposta para o teatro em terras de Portugal. trata-se de O Salário dos Poetas. Mas não sei a repercussão...

inominável disse...

o que eu andava a perder tão longe daqui... mas não posso estar em todo o lado, embora às vezes pareça, embora às vezes queira, embora às vezes me esqueça...

beijos
beijos
beijos
beijos